NOTA TÉCNICA

Nota Técnica sobre os Art. 5º e Art. 6º da Resolução nº 01/CNOMP

Art. 5º Para serem recebidas na Ouvidoria, as manifestações deverão ter a autoria identificada. Parágrafo único. Admitir-se-á excepcionalmente o sigilo dos dados pessoais, desde que o interessado requeira o anonimato de forma
expressa e justificada.
Art. 6º As manifestações anônimas poderão ser admitidas quando forem dotadas de razoabilidade mínima e estiverem acompanhadas de informações ou documentos que as apresentem verossímeis.

Designado pelo plenário do Conselho Nacional dos Ouvidores do Ministério Público -CNOMP, em sua última reunião ordinária, realizada em Goiânia, como relator de Nota Técnica acerca dos Art. 5º e Art. 6º da Resolução nº 01 do egrégio Conselho sobre a temática do anonimato em manifestações registradas nas Ouvidorias do Ministério Público, bem como, quanto à guarda do sigilo dos dados do manifestante quando identificado, permito-me ater, neste primeiro momento, a questão do anonimato(Art. 6º), tema tão relevante e controverso no âmbito de nossas Ouvidorias. Relevante pela necessidade de se sopesar os valores postos em conflito quando de uma imputação apresentada sem autoria definida, juízo que implicará na validação das ações dos membros do Ministério Público. Controverso pelas variadas regulamentações, que ora vedam ou autorizam o conhecimento e processamento das informações anônimas, no âmbito de nossas instituições e de seu órgão de controle.

Sob o pálio constitucional dos direitos e garantias individuais, onde se tem como livre a expressão do pensamento, ressalvada a vedação ao anonimato(art 5º, IV da Constituição Federal), inúmeras decisões pretórias rechaçam a validade de qualquer procedimento originado por denúncia anônima, tomando como iníqua e inócua a imputação de fato, ainda que tipicamente delituoso, pela impossibilidade de se redargüir seu autor em caso de não comprovação ou falsidade do comunicado. A simples possibilidade da falsidade da imputação, o que ofenderia a honra e a dignidade do imputado, tem-se prestado ao pronto e peremptório afastamento da tomada de quaisquer medidas apuratórias, relegando notícias crime a categoria das aleivosias próprias dos sentimentos mesquinhos e perniciosos.

A livre manifestação do pensamento é a síntese da liberdade plena do indivíduo, pois permite a ele extravasar seus conceitos, convicções e juízos, sem que limitações lhe sejam impostas. A exposição da persona implica indissociavelmente na identificação do indivíduo, pelo que sua ocultação é antinatural e revela-se odiosa quando intencionada a provocar ofensa a outrem. A assunção da responsabilidade por suas manifestações sujeita seu autor ao confronto com eventual ofendido na esfera judicial.    

O patrimônio moral e as garantias individuais, aqui contempladas as inviolabilidades, merecem e tem o respeito e a proteção estatal que impõe a todos a observância desses valores como princípios básicos para a boa convivência social.

A sacralização constitucional da preservação da personalidade, todavia, não pode ser absoluta, devendo ser harmonizada com outros princípios constitucionais.

A mesma Constituição que protege o indivíduo, garante à sociedade a segurança pública, um governo probo e instituições que preservem a ordem e zelem pelos interesses sociais. O ordenamento jurídico compartilha com o cidadão a responsabilidade pela preservação desses direitos. Assim, o direito de petição, a inafastabilidade da jurisdição, a participação do cidadão na formulação e fiscalização das políticas públicas e no controle social da administração pública, a comunicação de fatos delituosos e a provocação da atividade estatal consistem não só em direitos, mas também em deveres para todos entes sociais.

A violação da ordem e da paz, o desvirtuamento das ações e finalidades das gestões públicas, a ofensa a direitos comuns, não atingem tão-somente o cidadão individualmente considerado, mas sim toda a sociedade que clama pela proteção oficial.

Com o direito e o dever compartilhado de zelar pela harmonia das relações sociais, o cidadão pode e deve comunicar transgressões às regras legais, provocando a ação estatal para a preservação ou restauração da ordem. É sabido, no entanto, que a exposição da identidade do noticiante pode violar-lhe a intimidade e a segurança, pelo justo temor de retaliações por parte dos envolvidos nos fatos noticiados. Não se trata aqui de furtar-se a responsabilidade, mas sim da preservação de seus valores individuais, valores tão caros ao noticiante quanto o são ao imputado autor da suposta transgressão.

A livre manifestação do pensamento, conceitual ou analítica, implica em juízo crítico, por isso mesmo sujeita a confrontações. Muito diferente é a comunicação de fato típico e antijurídico, a notitia criminis. A comunicação de fato violador de preceitos legais, inclusive da esfera político-administrativa, constitui dever civil, sujeitando os fatos a apreciação da autoridade pública que tem como dever funcional a verificação da veracidade dos fatos e sua apuração.

A denúncia anônima, ainda que por muitos seja desconsiderada, é reconhecida no ordenamento jurídico. No Código Penal Brasileiro, após tipificar a denunciação caluniosa, o legislador estabeleceu como causa de aumento de pena o fato de o agente se servir do anonimato para ensejar a instauração de procedimento contra alguém sabidamente inocente.

Na doutrina, os ensinamentos de José Afonso da Silva em seu comentário à Constituição: “a notitia criminis anônima, eivada de um mínimo de veracidade e, tratando-se de ação penal pública, merece todo respeito no ordenamento jurídico pátrio.”

No mesmo sentido Frederico Marques, Rogério Lauria Tucci, Mirabete e Fernando Capez, sendo do Curso de Processo Penal deste último: “a delação anônima(notitia criminis inqualificada) não deve ser repelida de plano, sendo incorreto considerá-la sempre inválida: contudo, requer cautela redobrada por parte da autoridade policial, a qual deverá, antes de tudo, investigar a verossimilhança das informações”.

Em acórdãos recentes, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça tem admitido o conhecimento das denúncias anônimas para que se proceda, em investigação preliminar, a verificação da veracidade dos fatos noticiados:

Supremo Tribunal Federal
HC 98345/RJ(16.06.2010)
Relator Ministro Marco Aurélio

Ementa: Possibilidade de denúncia anônima, desde que acompanhada de demais elementos colhidos a partir dela. Inexistência de constrangimento ilegal. Firmou-se a orientação de que a autoridade policial, ao receber uma denúncia anônima, deve antes realizar diligências preliminares para averiguar se os fatos narrados nessa “denúncia” são materialmente verdadeiros, para, só então, iniciar as investigações. 

Supremo Tribunal Federal
HC 99490/SP(23.11.2010)
Relator Ministro Joaquim Barbosa

Ementa : Segundo precedentes do Supremo Tribunal Federal, nada impede a deflagração da persecução penal pela chamada “denúncia anônima”, desde que seguida de diligências realizadas para averiguar os fatos nela noticiados.

Superior Tribunal de Justiça
HC 114846/MG(15.06.2010)
Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima 

Ainda que com reservas, a denúncia anônima é admitida em nosso ordenamento jurídico, sendo considerada apta a deflagrar procedimentos de averiguação, como o inquérito policial, conforme contenham ou não elementos informativos idôneos suficientes, e desde que observadas as devidas cautelas no que diz respeito à identidade do investigado(HC  44.649/SP)

Superior Tribunal de Justiça
RMS 32065/PR(17.02.2011)
Relator Ministro Mauro Campbell Marques

Impõe-se destacar também que a “denúncia” anônima, quando fundada -vale dispor, desde que forneça, por qualquer meio legalmente permitido, informações sobre o fato e seu provável autor, bem como a qualificação mínima que permita sua identificação e localização-, não impede a respectiva investigação sobre a sua veracidade, porquanto o anonimato não pode servir de escudo para eventuais práticas ilícitas.                            

Dessume-se destes entendimentos que, apresentada anonimamente uma denúncia de transgressão legal, e no confronto de direitos igualmente tutelados, sopesados com a prevalência do interesse social ao individual, cumpre às autoridades públicas que tem como dever a persecução dos atos ilícitos, proceder informalmente investigação prévia para a apuração da veracidade dos fatos e identificação de autoria, acautelando-se na preservação da identidade e dos valores individuais do investigado. Valer-se de direitos e garantias para a prática de delitos e escusar-se da persecução estatal é tão pérfido e mais socialmente ofensivo que se valer do anonimato para denunciá-los.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) ao regulamentar a instauração e tramitação dos inquéritos civis contemplou a recepção de denúncia anônima, dizendo textualmente que não implicará na ausência de providências, o conhecimento dos fatos assim apresentados(art. 2º, §3º da Res. 23/07).
                                          
Mais recentemente, em 18 de maio de 2011, o mesmo Conselho aprovou proposta de emenda regimental, de autoria do Conselheiro Luiz Moreira, relatada pelo Conselheiro Cláudio Barros -visando adequar aos princípios do Estado Democrático de Direito e potencializar o papel do órgão, que regulamenta o procedimento a ser dado às manifestações que aportem anonimamente e que em razão da gravidade dos fatos ou de sua relevância exigirem apuração(Emenda Regimental nº 05).

O Conselho Nacional dos Procuradores Gerais(CNPG) está veiculando na televisão uma vinheta sobre o combate à corrupção e lavagem de dinheiro em que, após esclarecimentos gerais, pede aos cidadãos que denunciem, ainda que anonimamente, fatos que tenham conhecimento. 

A experiência à frente da Ouvidoria tem demonstrado que das manifestações registradas sem identificação, grande parte gera procedimento formal para investigação dos fatos noticiados.

Destaco, neste ponto, que a Ouvidoria é um órgão autônomo da administração da instituição, definitivamente não possuindo atribuições próprias dos órgãos de execução. Não pode, pois, a Ouvidoria furtar do Promotor de Justiça o conhecimento de denúncia anônima de fatos afetos às suas atribuições, cabendo a este, e tão-somente a ele, o juízo exclusivo sobre seu recebimento e apuração. No que se refere a denúncias anônimas quanto a conduta de membros da instituição, compete exclusivamente a Corregedoria conhecer da notícia e tomar as providências que entender cabíveis. No entanto, membros e órgão correicional deverão acautelar-se na verificação da autenticidade e veracidade das informações, resguardando os direitos e preservando a personalidade do imputado.

Feitas essas considerações, proponho o seguinte enunciado orientador das Ouvidorias no que se refere ao recebimento de manifestações anônimas:

1) A Ouvidoria do Ministério Público receberá e registrará as manifestações anônimas que pela descrição dos fatos forneçam indícios suficientes a verificação de sua verossimilhança.

1a) Recebida manifestação anônima contendo notícia de fato certo e determinado ensejador da atuação do Ministério Público, e que em razão da gravidade ou relevância exigir apuração, a Ouvidoria deverá encaminha-la ao órgão detentor das atribuições para conhecimento e providências a seu juízo.

1b) Recebida manifestação anônima contendo notícia de fato certo e determinado imputado a membro do Ministério Público, e que em razão de sua natureza, gravidade ou relevância exigir apuração, a Ouvidoria deverá encaminha-la a Corregedoria Geral do Ministério Público, detentora das atribuições para conhecimento e providências a seu juízo.

Aprovada a presente proposição de enunciado, sugiro:

a) ao titular da Ouvidoria das unidades do Ministério Público -aquelas que rejeitam o conhecimento das manifestações apresentadas sem identificação de autoria, que revejam seu posicionamento, tomando como norte o poder-dever de investigação e persecução dos ilícitos e a preponderância de sua missão constitucional na defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais.        
 
b) ao titular da Ouvidoria das unidades do Ministério Público que já tem regulamentada a recepção de manifestações de autoria não identificada que promova junto à Corregedoria a edição de recomendação aos Promotores de Justiça, para que conheçam as “denúncias anônimas” e procedam investigações preliminares para a comprovação de sua veracidade, desde que se refiram a fato determinado e contenham indícios que permitam a identificação de sua autoria, preservados os direitos inerentes a personalidade do imputado.

Relatório apresentado em Fortaleza aos 02 dias do mês de setembro de 2011.

Mauro Flávio Ferreira Brandão
Conselheiro
Ouvidor do Ministério Público de Minas Gerais.